Como o inesperado rege a nossa vida, é importante ter ao seu lado alguém que saiba lidar com ele
em gente que acredita em destino. Eu acredito que é o acaso quem rege a nossa existência de forma quase absoluta.
Penso no encontro acidental dos nossos pais, no desejo que poderia não
ter surgido entre eles, no espermatozóide que chegou à frente de milhões
de outros na corrida mais importante das nossas vidas. Quanto disso foi
planejado? Nada, assim como costumam ser acidentais os nossos próprios
encontros amorosos, a concepção dos nossos filhos e as circunstâncias
imprevistas que nos levam a fazer amigos importantes, escolher carreira e
definir a cidade onde iremos morar.
O imprevisto invade a nossa vida enquanto no debruçamos cheios de planos sobre o calendário do ano que vem.
Acho o acaso tão importante que defendo que ele deveria ser incorporado
aos nossos critérios de eleição afetiva. Não adianta observar os
candidatos a parceiros apenas em situações controladas, como se o amor
fosse um experimento de laboratório. Se o sujeito a convidou para
jantar, teve três dias para arranjar as coisas e aparece (cheiroso e bem
vestido) com uma rosa vermelha e reservas para o bistrô mais concorrido
da cidade, ponto para ele por Organização & Método – mas isso não
deveria encerrar o período de observação.
Para saber quem realmente é o cara, melhor seria estar com ele na noite
em que o pneu do carro furasse na Marginal. Ele respira fundo, sorri
para você e desce para resolver o assunto ou, tudo ao contrário, se põe a
dizer palavrões em voz baixa e reclamar que não deveria ter saído de
casa – culpando você, indiretamente, pelo contratempo?
Qualquer mulher pode ser encantadora num fim de semana de outono no Rio
de Janeiro em que não haja uma brisa fora de lugar, mas como ela reage
quando a companhia aérea perde as malas e vocês ficam com a roupa do
corpo em Buenos Aires, num frio de 11 graus? Eu gostaria de saber essas
coisas antes de me apaixonar.
Se o futuro pudesse ser desenhado numa planilha Excel, o melhor a fazer
por si mesmo seria conquistar a analista de sistemas mais atraente da
empresa e fazer dela a mulher da sua vida, mas nós sabemos que as coisas
não são tão simples. Num mundo dominado pelo acaso, é importante ter ao
seu lado alguém capaz de lidar com os imprevistos e as frustrações,
porque eles vão se repetir o tempo inteiro. Planejar não é suficiente
para ser feliz.
Quando o inesperado se intromete e atrapalha os nossos planos, então
testamos o nosso temperamento e o de quem nos acompanha – além de uma
coisinha de enorme importância chamada compatibilidade.
Sexta-feira passada eu tentei ir à praia. Reservei pousada, abasteci o
carro e caí na estrada com a mulher, no horário em que o trânsito
arrefece em São Paulo. Tudo planejado. Quatro horas depois, estava no pé
da Serra do Mar metido no maior congestionamento da minha vida, com a
chuva caindo torrencialmente, água subindo e o rádio contando histórias
de morte e quedas de barreira. Depois de momentos de quase pânico,
decidimos sair da estrada e procurar refúgio em Cubatão, uma das cidades
menos turísticas do mundo ocidental.
Rodamos pelas ruas semi-alagadas e desertas, batendo à porta dos poucos
hotéis, todos muito simples e totalmente tomados pelos refugiados da
estrada. Ao final, fomos acolhidos no Lopes, que fica em frente à
delegacia da cidade. De início não havia vagas, mas permitiram
gentilmente que passássemos a noite no sofá da recepção, protegidos da
chuva, das enchentes e dos ladrões que agem nos congestionamentos. Nas
circunstâncias, estava ótimo. Duas horas depois, surgiu algo ainda
melhor – um sujeito que alugara a suíte do Lopes para uma farra na
madrugada não apareceu, e nós herdamos as acomodações. Com sauna,
hidromassagem, TV a cabo e meio ar condicionado. Um luxo.
Ali passamos um longo fim de semana. Houve passeios a pé, compras no
comércio alagado da cidade, pizza de brócolis com catupiry e uma sessão
de cinema no complexo do Parque Anilina. Vimos o novo filme do Bruce
Willis, dublado. Eu gostei, minha mulher disse que não iria comentar.
Voltamos a São Paulo às 6 da manhã de domingo, quando a estrada reabriu.
Nós havíamos sobrevivido, e o casamento também.
Eu consigo pensar em meia dúzia de mulheres com quem essa mesma situação teria virado um pesadelo. Posso ver uma delas reclamando e me recriminando até que eu perdesse a cabeça e fosse parar algemado na delegacia em frente ao hotel, depois de um acesso de loucura. Sou capaz de enxergar uma outra, sentada à beira da cama, empurrando para trás os cabelões e dizendo para a amiga no celular: “Cubatão, você acredita? Cubatão... Não, o carro dele não passa na enchente. Lembra que ele acha os jipões ridículos? Pois é”. Essa conversa não aconteceria dessa forma porque não houve sinal da TIM em Cubatão no fim de semana, mas a cena é totalmente plausível.
Não estou aqui fazendo críticas a certos tipos de pessoas. Acho, na verdade, que a culpa pelo clima detestável que se cria durante as crises não é de cada uma das partes, mas da interação ruim entre elas, a tal da compatibilidade. Diante do mesmo perrengue, mas em outra companhia, a pessoa funcionaria bem. É uma questão de quantidade de afeto e de respeito, claro, mas é também uma questão de afinidade. Se os modos do outro o irritam normalmente, isso não vai melhorar sob a pressão de uma crise. Quando a crise acontece, portanto, é um bom momento para observar seus sentimentos: você tem vontade de proteger o outro, fica feliz por ele estar ali, ou gostaria, do fundo do coração, que ele e o seu jeito professoral desaparecessem e você pudesse chamar um amigo querido? É importante saber.
Da minha parte, fico feliz por ter passado pelo teste de Cubatão. Ela reforçou minha convicção de que a vida, embora tenha de ser planejada no dia a dia, é, essencialmente, algo sobre o qual eu não tenho controle. Só posso me assegurar, precariamente, que quando o acaso tomar as rédeas eu tenha ao meu lado alguém capaz de rir comigo, de me dar conforto e de oferecer aquilo que homens e mulheres têm oferecido uns aos outros por milhares de anos – uma pequena chama de afeto capaz de iluminar os nossos corações cheios de medo e de aflição.
Eu consigo pensar em meia dúzia de mulheres com quem essa mesma situação teria virado um pesadelo. Posso ver uma delas reclamando e me recriminando até que eu perdesse a cabeça e fosse parar algemado na delegacia em frente ao hotel, depois de um acesso de loucura. Sou capaz de enxergar uma outra, sentada à beira da cama, empurrando para trás os cabelões e dizendo para a amiga no celular: “Cubatão, você acredita? Cubatão... Não, o carro dele não passa na enchente. Lembra que ele acha os jipões ridículos? Pois é”. Essa conversa não aconteceria dessa forma porque não houve sinal da TIM em Cubatão no fim de semana, mas a cena é totalmente plausível.
Não estou aqui fazendo críticas a certos tipos de pessoas. Acho, na verdade, que a culpa pelo clima detestável que se cria durante as crises não é de cada uma das partes, mas da interação ruim entre elas, a tal da compatibilidade. Diante do mesmo perrengue, mas em outra companhia, a pessoa funcionaria bem. É uma questão de quantidade de afeto e de respeito, claro, mas é também uma questão de afinidade. Se os modos do outro o irritam normalmente, isso não vai melhorar sob a pressão de uma crise. Quando a crise acontece, portanto, é um bom momento para observar seus sentimentos: você tem vontade de proteger o outro, fica feliz por ele estar ali, ou gostaria, do fundo do coração, que ele e o seu jeito professoral desaparecessem e você pudesse chamar um amigo querido? É importante saber.
Da minha parte, fico feliz por ter passado pelo teste de Cubatão. Ela reforçou minha convicção de que a vida, embora tenha de ser planejada no dia a dia, é, essencialmente, algo sobre o qual eu não tenho controle. Só posso me assegurar, precariamente, que quando o acaso tomar as rédeas eu tenha ao meu lado alguém capaz de rir comigo, de me dar conforto e de oferecer aquilo que homens e mulheres têm oferecido uns aos outros por milhares de anos – uma pequena chama de afeto capaz de iluminar os nossos corações cheios de medo e de aflição.
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)
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