Ter ou não um homem ao lado está deixando de ser a questão básica da vida. Mas ainda são poucas as pessoas que buscam autonomia
É fundamental ter um par amoroso? A maioria das pessoas paga qualquer preço por isso. Afinal, desde que nascemos, ouvimos que só é possível ser feliz a dois, e que, para isso, precisamos encontrar a “pessoa certa”. A autonomia não é fácil de ser alcançada. São anos e anos de condicionamento, em que vamos assimilando os valores da cultura em que vivemos.
Cada vez mais mulheres questionam a suposição deque a verdadeira felicidade se equipara a estar envolvida com um homem.
É fundamental ter um par amoroso? A maioria das pessoas paga qualquer
preço por isso. Afinal, desde que nascemos, ouvimos que só é possível
ser feliz a dois, e que, para isso, precisamos encontrar a “pessoa
certa”. A autonomia não é fácil de ser alcançada. São anos e anos de
condicionamento, em que vamos assimilando os valores da cultura em que
vivemos.
Ocorre algumas vezes de uma mulher autônoma, aquela que já se
libertou do modelo imposto para a mulher, deslizar sem perceber para o
terreno do amor idealizado e ao abrir os olhos compreender que viveu bem
longe da realidade. Foi o que aconteceu com Bonnie Kreps, cineasta
canadense premiada, jornalista, e uma das mais destacadas pensadoras
feministas. A experiência amorosa que viveu foi muito significativa,
motivando-a a escrever um livro sobre o mito do amor romântico.
Transcrevo seu relato por considerá-lo rico e esclarecedor.
“Conheci meu ‘Homem Certo’ ao entrevistá-lo para um artigo que eu
estava escrevendo. Lembro-me bem de ter pensado três coisas sobre aquele
primeiro encontro: primeira, ele me parecia bastante atraente
sexualmente; segunda, ele também parecia um ‘moderninho duvidoso’
(expressão que uso quando não confio na aparente abertura e falta de
masculinidade exagerada do ‘novo macho’); terceira, como ele me via como
uma conhecida feminista e eu respondi a suas perguntas sobre isso com
franqueza, ele talvez me consideraria rigorosa demais para um
envolvimento posterior.
Todavia, ele me surpreendeu: convidou-me para jantar, quis um
envolvimento sexual e em nenhum momento declarou-se daquela maneira
estridente e importuna usada pelo herói do romance ideal. Agora sei o
significado de ‘ele me deixou sem fôlego’: perda do controle enquanto se
pensa ‘Isso deve ser amor!’ Antes que eu pudesse dizer ‘Que
romântico!’, já havia me mudado para o apartamento dele.
Os termos que usamos para o romance são muito adequados. Eu com
certeza estava com a cabeça nas nuvens. Principalmente porque estava
convencida de que depois de vários erros — que incluíam um casamento —,
eu por fim estava acertando. ‘Acertar’ significa ter uma relação amorosa
verdadeira com um homem. O relacionamento estava certo, ele era o
“Homem Certo”; portanto, tudo o que ele fizesse também era de algum modo
certo.
Na pior das hipóteses, aquilo era fascinante por ser diferente do que
eu, por via de regra, teria gostado. Consegui, então, restringir uma
série de pensamentos, mas, nos cinco anos seguintes, tornei-me cada vez
menos capaz de traçar esse tipo de limite e vivi mais e mais de um modo
de que nunca havia gostado e de que não gosto até hoje. No entanto,
durante todo esse tempo, sentia que havia tirado a sorte grande.
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Meu corpo foi mais esperto do que eu. Engordei onze quilos e
comecei a desenvolver uma tendência para o glaucoma. Continuei a
trabalhar, porém estava cada vez mais difícil me concentrar. Lembro-me
de um constante desejo de mudar a fundo algo que não conseguia
determinar com precisão, mas mesmo assim sentia que deveria ser mais
serena. Com o tempo isso se tornou uma exigência mental constante: seja
‘serena’. Agora considero isso uma interessante declaração inconsciente
em vista de um significado da palavra ‘serena’: liberta de qualquer
coisa que perturbe. Eu ainda estava tentando, a duras penas, ser serena,
quando o final de meu romance ideal veio com a súbita declaração dele: —
‘A centelha se apagou.’ — Sem aviso, nenhuma explicação na hora ou
depois, eu apenas estava fora.
Em estado de choque, fugi. Não é nada agradável quando todas as
fantasias que temos vêm de uma só vez se alojar em nós. A dor foi
terrível. Durante a primeira semana de meu retiro, eu tinha pesadelos
todas as noites. Cada sonho se revelava uma variação do mesmo tema: meu
antigo “Homem Certo” estava sempre com outras pessoas e sempre me
ignorava completamente, eu permanecia atormentada e quase invisível nas
proximidades. Eu estava exilada da humanidade como só se pode estar em
sonhos.
Todos os dias eu esquiava e tentava encarar os entulhos das minhas
fantasias. E, todos os dias, uma frase de Woody Allen pairava na minha
cabeça. Era um daqueles seus comentários sobre sexo: uma boa coisa sobre
a masturbação é que, pelo menos, você sabe que está na cama com um
amigo. Por que, eu me perguntava sorrindo, toda vez que me recordava,
por que penso sempre nessa frase? Quando descobri a resposta, fiquei
imóvel sobre os esquis, enquanto o mundo implodia com a força da minha
sagacidade. De repente, meus sonhos fizeram sentido. Eles estavam
tentando me contar a verdade de minha situação. Acorde, eles me
alertavam, você não está na cama com um amigo e nunca esteve. Eu soube,
então, que era verdade; sei disso agora.
Meu sofrimento logo foi substituído pela curiosidade. Essa mudança se
deu devido ao comentário de uma amiga. Quando soube de minha súbita
expulsão do verdadeiro amor, ela disse: — É claro que me solidarizo com
sua dor, mas o que quero dizer acima de tudo é: seja bem-vinda. — Isso
me impressionou profundamente. O que foi que ela viu durante anos e não
conseguiu me dizer? Onde eu estivera?”
Atualmente, cada vez mais mulheres questionam a suposição de nossa
cultura de que a verdadeira felicidade se equipara a estar envolvida com
um homem. Ter ou não um homem ao lado está aos poucos deixando de ser a
questão básica da vida. Mas ainda são poucas as mulheres e os homens
que buscam autonomia. A grande maioria ainda mantém no amor os padrões
de comportamento tradicionais, variando apenas o grau.
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