Excluídas as distinções anatômicas, homens e mulheres são iguais?
Passamos a maior parte dos anos 60 e 70 tentando nos convencer de que
sim. Nessas duas décadas, vigorou o paradigma segundo o qual todas as
diferenças comportamentais entre os sexos eram fruto da educação.
A mais célebre vítima da teoria da neutralidade dos gêneros foi David
Reimer. Ele nasceu em 1965 como um garoto saudável. Mas, depois que teve
seu pênis destruído numa canhestra operação para corrigir uma fimose,
seus pais procuraram o então papa dos estudos sobre sexualidade, John
Money, do Hospital Johns Hopkins, que os convenceu de que o que de
melhor poderiam fazer pelo menino era submetê-lo a uma cirurgia para
extração dos testículos e educá-lo como mulher. Foi um desastre. Apesar
dos estímulos sociais e das injeções de hormônios femininos, ele jamais
se sentiu como uma garota. Era frequentemente importunado por seus
colegas de escola, em Winnipeg (Canadá). Aos 13, já sofria de depressão
severa, com ideações suicidas. Aos 14, depois que seus pais lhe
revelaram sua verdadeira história, ele decidiu viver como homem. Trocou
os hormônios femininos por masculinos e fez uma mastectomia (retirada
dos seios) e uma faloplastia (construção de pênis). Casou-se. Mas a
depressão nunca o abandonou. Suicidou-se em 2004.
O caso só ficou conhecido porque, em 1977, o sexologista Milton Diamond o
convenceu a tornar pública sua história, para evitar que outras
crianças fossem submetidas ao mesmo tratamento. Os detalhes estão no
livro "As Nature Made Him: The Boy Who Was Raised as a Girl" (como a
natureza o fez: o menino que foi criado como menina).
Pela teoria da neutralidade, meninos brincam com carrinhos e armas e
meninas optam por bonecas apenas porque são estimulados por seus pais a
fazê-lo. Hoje, sabemos que essas preferências são inatas e têm base
biológica. Uma elegante prova disso é que chimpanzés selvagens machos
também gostam de brincar com paus como se fossem clavas, já as fêmeas
carregam os mesmos pedaços de pau para cima e para baixo como se fossem
filhotes.
E a coisa vai muito além das escolhas de brinquedos. Após algumas
décadas de pesquisas mais acuradas que as de Money, acumulam-se
evidências de que as diferenças de gênero afetam também a cognição, as
preferências e a própria noção de propósito da vida. Isso,
evidentemente, tem implicações profundas sobre a educação, o mercado de
trabalho --e o feminismo.
Parte da dificuldade está no tabu que ainda cerca o tema, mesmo nos
meios acadêmicos. Vale lembrar que uma das razões para a demissão de
Larry Summers da reitoria de Harvard, em 2006, foi ele ter sugerido que o
baixo número de mulheres em certos ramos da ciência poderia dever-se a
diferenças naturais entre os sexos.
Mas, gostemos ou não, hoje sabemos que os níveis de exposição pré-natal a
hormônios sexuais afetam a forma como o cérebro de meninos e meninas se
organiza. Algumas características tipicamente masculinas relevantes
para a educação são a propensão a correr riscos, que abarca a
agressividade e o gosto pela competição, e a facilidade para
relacionar-se com objetos e sistemas. Já as meninas se destacam pela
maior disciplina e a capacidade de empatia, que inclui o forte interesse
por pessoas.
Nesses casos, as diferenças são marcantes. Pesquisa com crianças entre
10 e 23 meses mostrou que meninos contam histórias agressivas 87% do
tempo, contra 17% de meninas. Entre 9 e 10 anos, garotos passam 50% de
seu tempo livre em brincadeiras competitivas, contra apenas 1% das
garotas.
Vale aqui o alerta de que esses achados são apenas médias, as quais
dizem muito pouco a respeito de indivíduos reais. Lembre-se de que, na
média, a humanidade tem um testículo e um seio.
Na educação, os números não dão margem a dúvida: os garotos estão perdendo feio para as garotas na performance educacional.
Hoje, nos EUA, meninos têm três vezes mais probabilidade do que meninas
de precisar de aulas de recuperação e duas vezes mais de ser reprovados.
A chance de eles abandonarem a escola é 30% maior.
Em 30 países avaliados pela OCDE, as meninas se saem muito melhor do que
os meninos em leitura e escrita, e já os alcançam em matemática, área
em que eles lideravam incontestavelmente até o início dos anos 80.
Em todos os países do mundo, exceto a África subsaariana, há mais
mulheres que homens cursando a educação superior. Nos EUA, correm
rumores, nunca admitidos oficialmente, de que as principais
universidades facilitam a entrada de homens, para que a proporção de
alunas não exceda 60%.
Nos últimos anos, surgiram vários livros explorando as diferenças entre
gêneros e propondo soluções mais ou menos milagrosas para resolver o que
identifiquem como "o problema".
Um bom exemplar é "Why Gender Matters" (por que o gênero importa), do
médico Leonard Sax, no qual o autor faz uma defesa entusiasmada da
separação por sexo nas escolas. Não desenvolvo muito o tema porque ele
foi objeto de um texto que escrevi algumas semanas atrás para a edição impressa da Folha.
O que tenho a dizer é que, embora o título traga alguns "insights"
interessantes, ele incorre no grave pecado de ser uma obra militante.
Sax, que segue a agenda conservadora, não hesita muito antes de exagerar
no peso das evidências científicas, desde que isso sustente sua tese.
Bem mais equilibrado é "The Sexual Paradox" (o paradoxo sexual), da
psicóloga Susan Pinker. Para ela, o sexo masculino é mais extremo do que
o feminino. Isso se materializa na maior proporção tanto de gênios como
de retardados entre os homens. Eles também têm (na média) um leque
menor de interesses, aos quais se dedicam de corpo e alma. Em seu grau
superlativo, a mente masculina seria a de um autista.
Já elas são menos extremas e mais empáticas. Embora Pinker não o afirme,
outros autores propõem que o superlativo da mente feminina seja a
esquizofrenia. É o excesso de empatia que leva uma pessoa a conversar de
igual para igual com uma geladeira.
Embora não tenham sido detectadas diferenças cognitivas que as tornem
menos proficientes em ciências e matemáticas, elas quando podem preferem
abraçar profissões que lidem com pessoas (em oposição a objetos e
sistemas). É por isso que hoje quase dominam as carreiras médicas,
enquanto permanecem minoritárias na engenharia e na física, para não
mencionar as oficinas mecânicas.
Ainda mais interessante, nos países hiperdesenvolvidos, onde elas gozam
de maior liberdade para escolher, esse "gap" é maior do que nas nações
em desenvolvimento, onde elas são muitas vezes obrigadas a exercer
ofícios que não são os de seus sonhos. É isso que explica uma proporção
maior de engenheiras na Turquia e na Bulgária do que na Dinamarca e na
Suécia.
Só quem chegou perto do 50-50 foi a extinta União Soviética, e isso
porque lá eram as profissões que escolhiam as pessoas e não o contrário.
Além disso, por operarem com múltiplos interesses, as mulheres não se
prendem tanto à carreira. Trocam sem muita hesitação uma posição de
comando para ficar mais tempo com a família. Essa é uma das razões por
que muitas mulheres sacrificam trajetórias promissoras --e a perspectiva
de chegar ao comando de empresas-- em favor de horários mais flexíveis.
É esse desejo, mais do que a discriminação que explica a persistente
diferença salarial entre homens e mulheres, pelo menos nos países
desenvolvidos, onde já não se registram casos muito acintosos de
preconceito.
Para Pinker, as mulheres seriam mais felizes se reconhecessem as
diferenças biológicas entre os gêneros e parassem de tentar imitar os
homens, buscando sem culpa o que realmente querem. É isso que ela propõe
como o novo feminismo.
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae
Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001.
Escreve na versão impressa da Página A2 às terças, quartas, sextas,
sábados e domingos e às quintas no site.
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