Como esse sentimento feio e comum afeta as nossas relações
A constatação é inevitável: há sempre alguém mais alto, mais bonito ou mais inteligente do que cada um de nós.
Na infância a gente descobre, sem prazer nenhum, que a criança ao lado
parece atrair todas as atenções. Na adolescência há o cara, ou a menina,
por quem metade da escola é apaixonada. Mesmo na vida adulta – quando a
racionalidade deveria nos ajudar – o drama continua e se amplia. O
terreno da competição (e da dor) tornou-se maior: aquele sujeito é
promovido todo ano, aquela outra arruma um namorado por mês, fulano é
adorado por todo mundo, sicrana viaja todo ano para lugares incríveis...
A coisa não para. Sempre haverá um motivo, sempre haverá alguém para
nos causar inveja.
Dentro dos relacionamentos não é diferente. Eu consigo pensar, com base
nos meus próprios e mesquinhos sentimentos, em pelo menos duas maneiras
pelas quais a inveja pode se meter na vida dos casais – uma externa,
bem óbvia, e outra interna, na qual se presta menos atenção.
A situação óbvia é a inveja pelo parceiro do outro.
Você está lá, em paz com o seu quinhão, mas o seu amigo ou amiga
aparece com uma pessoa nova, extremamente atraente e sedutora. Você fica
feliz por ele ou por ela? Talvez. Mas é possível que você reaja
humanamente, passando a olhar de forma crítica o seu próprio parceiro ou
parceira, que, até ontem, fazia você feliz. De tanto desejar o namorado
ou a namorada do outro – que pernas, que sorriso, que jeito gostoso –
você acaba achando a sua ou o seu sem graça. Sente impulsos de arrumar
para você mesmo alguém igualmente atraente, charmoso ou inteligente.
Isso se chama inveja. Detona a relação, estraga a sua cabeça e,
rigorosamente, não tem solução: sempre vai aparecer alguém acompanhado
de uma pessoa encantadora. Mais bonita, mais jovem ou mais bem sucedida
do que aquela ao seu lado. Se você não aprender a ficar sereno com as
suas escolhas, vai competir (e perder), o tempo inteiro.
A situação que eu descrevi acima é muito comum entre os homens. Não
apenas por que somos competitivos – e, potencialmente, mais superficiais
que as mulheres –, mas por sermos grandes mentirosos. Os homens
exageram muito a própria felicidade para impressionar o resto do bando.
Sobretudo quando se trata de sexo. O sujeito começa a sair com uma nova
mulher e “reclama”, repetidamente, que não consegue mais dormir de tanto
transar. Para o cara ao lado, que está num relacionamento estável e
esqueceu como ele mesmo costumava exagerar essas histórias, fica a
impressão, dolorosa e falsa, de que todos vivem como faunos e apenas ele
tem vida sexual ou afetiva medíocre. Há que tomar cuidado com as
palavras dos outros.
A outra situação em que a inveja atrapalha é quando ocorre no interior dos casais.
Às vezes é duro aceitar o sucesso ou as virtudes da pessoa de quem a
gente gosta. De alguma forma, eles nos ofendem e nos inferiorizam. Em
vez de celebrar as realizações da pessoa de quem estamos próximos, nos
ressentimos delas. Sem admitir. Isso acontece em vários terrenos.
É muito comum ver homens magoados com o sucesso da mulher deles. A vida
dele não andou como ele gostaria, a da namorada vai de vento em popa, o
sujeito fica infeliz. Vai se tornando amargo, ressentido, às vezes até
agressivo. Começa a detonar a parceira, como se não houvesse mérito –
apenas sorte e privilégio – no que ela obteve. Isso é comum sobretudo
entre casais que se formam no trabalho. Uma carreira decola, a outra
não. O bode vem morar na sala.
Outras vezes, a inveja no interior do casal é provocada por coisas
subjetivas. Nós podemos ter inveja do temperamento, do caráter ou da
inteligência do outro – mesmo que eles não se transformem em dinheiro ou
reconhecimento material. Algumas pessoas têm uma nobreza que outras não
têm. Coragem para agir ou sentir de forma intensa, por exemplo. Traços
de personalidade são muito perceptíveis quando estamos próximos de
alguém. São eles que verdadeiramente definem uma pessoa, para além da
aparência ou das circunstâncias sociais.
No início, essas qualidades (ou mesmo defeitos) atraem de maneira
inequívoca. Mas, depois algum tempo, se não desenvolvermos em nós mesmos
traços que nos despertem admiração, se não crescemos,sobrevém certo
cansaço das virtudes do outro, uma impaciência crescente com aquilo que
sabemos ser admirável. Disciplina vira chatice. Honestidade parece
grosseria. Integridade não passa de teimosia. Inteligência se transforma
em pedantismo. Dignidade é apenas soberba. Humor nos parece
frivolidade. Leveza? Irresponsabilidade. No fundo, podemos estar tomados
pela inveja do que o outro é e nós gostaríamos, inutilmente, de ser.
Minha impressão, em resumo, é que a inveja não tem limites e seus efeitos são extremamente subestimados nas relações íntimas.
A gente pode ter inveja da beleza ou da juventude do parceiro. Pode ter
inveja da desenvoltura sexual dele ou dela. Seres humanos têm inveja
(que se confunde com ciúme) do passado das pessoas de quem gostam.
Podemos ter inveja do futuro dele ou dela, um sentimento esquisito e
doloroso. Quem não sentiu inveja da família do outro, do sono profundo
do outro, do filho ou filha linda que ele tem? Eu já. Suponho que vocês
também. A inveja faz parte da vida. Está no ar como o amor. Enxergá-la e
lidar conscientemente com ela – em vez de ser movido por ela sem
perceber – faz parte do nosso aprendizado. Aquele aprendizado que
começou na infância, quando o garoto da carteira da frente, e não você,
recebeu um afago da professora.
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras. Revista EPOCA)
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